agora todo mundo escreve com letra minúscula na internet?
a gente estuda o passado para entender o presente e, enquanto designer de produto, precisamos estar conscientes sobre a realidade material para a qual estamos projetando
eu não lembro exatamente quando comecei a escrever só em minúscula, mas faz um tempo que to notando a ausência de letras maiúsculas em nomes de músicas e álbuns, dos vídeos do youtube, nas mensagens e até nos perfis de marcas nas redes sociais
o materialismo histórico-dialético é a ferramenta perfeita para evitar cair em explicações simplistas do tipo “a geração mais nova não sabe escrever” – olhando para a história moderna da nossa comunicação escrita encontramos relações entre debates de um séculos atrás com a tendência de usar caixa baixa
a distinção entre maiúsculas e minúsculas é um mecanismo da linguagem escrita para demarcação de hierarquias sociais
em 1923 o designer e professor da Bauhaus, Moholy-Nagy, publicou o artigo die neue typographie construindo as bases da nova tipografia, movimento que defendia a simplificação gráfica como forma de comunicação eficiente
outro grande nome do design na época, Jan Tschichold, ampliou o alcance dessas ideias através de textos e práticas de design – consolidando os princípios do funcionalismo editorial em seus "dez mandamentos tipográficos" e rompendo com convenções ornamentais do passado
ordem, simplificação e claridade eram os ideais gráficos desse movimento
pouco depois, em 1925, Herbert Bayer desenvolveu uma tipografia “universal” que só tinha letras minúsculas. de acordo com ele, a palavra falada não faz distinção entre maiúscula e minúscula, então pra quê usar dois alfabetos diferentes?
nesse período, o construtivismo russo — com ênfase na experimentação, formas básicas e na função social do design — influenciou diretamente tendências como o funcionalismo e a nova tipografia
como você já percebeu, a tal tipografia universal não funcionou e ainda usamos dois alfabetos. mas as ideias se espalharam e influenciaram muitas pessoas designers nas décadas seguintes

a norma linguística abre brechas para que a escolha tipográfica seja, ela mesma, um ato político
a ortografia em vigor no Brasil quando eu estava no ensino médio recomendava o uso da maiúscula nos nomes dos “altos cargos, dignidades ou postos”. já o novo Acordo Ortográfico torna opcional o uso de iniciais maiúsculas em palavras usadas reverencialmente, por exemplo para cargos e títulos (exemplo: o Presidente ou o presidente)
acredito que toda essa a disputa pela manutenção ou dissolução de símbolos de poder através da escrita por décadas contribuiu para a percepção atual de que letras minúsculas oferecem uma comunicação menos formal, com uma estética confortável e autêntica
só que eu atribuo muito mais influência nesse processo à um espaço muito presente na nossa vida: redes sociais
pela própria estrutura das plataformas, a maioria dos @nomes de usuários mantém a escrita completamente minúscula – a exposição à determinados padrões gera mais aceitabilidade sobre eles que, por sua vez, gera mais propensão à alteração dos nossos próprios comportamentos
pra quem é cronicamente online, a escrita digital está presente na maior parte do nosso dia
marcas, criadores de conteúdo e artistas tiveram um papel central na popularização da escrita em letra minúscula ao escrever legendas, títulos de vídeos e músicas, nomes de perfis e até marcas em caixa baixa
para comemorar o aniversário de 15 anos, o g1 mudou o logo e adotou a letra minúscula em sua marca “para representar a proximidade com o público”
Travis Scott lançou um álbum (chave 🔥) em 2016 com o nome de todas as músicas escritas em caixa baixa
bell hooks foi uma autora, professora, teórica feminista, artista e ativista antirracista estadunidense que, por meio de uma linguagem acessível em seus livros, expressava um pensamento complexo avesso às formulações simplistas
ela definiu que seu pseudônimo se escreve com letra minúscula por que, para ela, a escrita deveria destacar ideias, não indivíduos
“muitas de nós adotamos os nomes de nossas ancestrais femininas para honrá-las e desconstruir a noção de que éramos mulheres únicas e excepcionais. queríamos dizer, na verdade, que éramos os frutos das mulheres que vieram antes de nós”
– bell hooks, numa entrevista em 2009
a preferência por letras minúsculas entre as gerações mais jovens é resultado de uma combinação de fatores
tinha uma galera cem anos atrás defendendo que a gente só precisava do alfabeto minúsculo para escrever – agora, a função de “maiúsculas automáticas” tá desativada no celular de muitas pessoas
a gente estuda o passado para entender o presente e, enquanto designer de produto, precisamos estar conscientes sobre a realidade material para a qual estamos projetando
essa consciência histórica nos ajuda a entender que cada padrão de comportamento e escolhas, até as aparentemente banais como escrever em letras minúsculas, podem carregar muito mais significado